Bem Vindo

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

O ensino de Direito no banco dos réus

Um dos maiores bichos-papões dos bacharéis em Direito é o Exame de Ordem, obrigatório para quem deseja seguir a advocacia, promovido pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O último concurso finalizado - dezembro de 2010 - apontou reprovação de 88,27% dos 106.891 inscritos. Do total, apenas 12.534 candidatos foram aprovados, de acordo com a OAB.

Apesar das severas críticas por parte dos estudantes - que afirmam que a prova é muito mais complexa do que diversos concursos públicos -, o presidente da Comissão de Exame de Ordem da OAB-RJ, Mauro Abdon, afirma que muitas instituições de ensino superior não conseguem transmitir com eficiência o conteúdo necessário para a prática da advocacia.

E essa afirmação vai de encontro com dados da entidade. Segundo a OAB, das instituições participantes do exame no fim do ano passado, 81 tiveram aprovação zero.

"O resultado foi muito ruim, abaixo do que se espera. Sabemos que o percentual de reprovação quase sempre será alto, pois, infelizmente, boa parte dos estudantes não consegue ao longo do curso adquirir os conhecimentos necessários para o exercício da advocacia e essa realidade não parece que irá melhorar a curto prazo. Contudo, esse número também sugere que o exame deve melhorar, para avaliar corretamente. Pedagogicamente falando, não gostei de algumas questões no último exame", reitera Abdon.
Quais os principais problemas que a OAB identifica nos cursos de Direito, principalmente nos piores, no que tange à infraestrutura?
Mauro Abdon - Há vários problemas, para além da infraestrutura. Por mais que a pós-graduação tenha se expandido no Brasil nos últimos 15 anos, é certo que não há quantidade suficiente de professores qualificados. Falo aqui da pós-graduação stricto senso, pois as lato senso, na área de Direito, com raras exceções, quase sempre são meras entregadoras de certificados, com pouquíssima exigência acadêmica. Por outro lado, o ensino privado colhe os resultados da política gananciosa dos últimos 20 anos. Criou-se a ideia de que, para ter um curso de Direito, basta ter "cuspe e giz", como se diz vulgarmente, ou seja, um sujeito falando para uma plateia. Não é bem assim. De fato, comparado a cursos como Medicina ou Engenharia, o investimento é menor, mas não significa que o custo seja baixo. Em geral, as faculdades problemáticas apresentam problemas comuns, além da baixa qualificação do corpo docente, como bibliotecas mal equipadas, escritórios de atendimento jurídico ruins e mal estruturados, com poucos professores, oferta deficitária de acesso à internet, com poucos computadores, conexão ruim. Além disso, não têm programa de pós-graduação e não aliam, portanto, ensino e pesquisa. Quem, ao contrário, tem tudo isso e ainda um corpo qualificado de professores vai ver sua margem de lucro muito reduzida, salvo se aumentar muito a mensalidade, o que inviabiliza o acesso do púbico-alvo da maioria dessas instituições, em regra oriundo das classes menos abastadas. Educação, portanto, de fato, quase sempre não combina com lucro.
As instituições de ensino superior, quando obtêm resultados ruins em avaliações, muitas vezes argumentam que isto ocorre, em grande parte, porque trabalham com alunos que chegam sem uma base sólida do ensino médio. Isto é realmente um problema, no caso dos cursos de Direito?
Essa é uma questão complicada. Fala-se muito dos problemas, mas não de suas causas. Além disso, vivemos um momento em que o debate público está praticamente interditado, "emburrecido". Mas é preciso aumentar a qualidade do debate, resgatar a análise crítica. Nesse sentido, considero esse argumento das instituições de ensino privadas, ao mesmo tempo, verdadeiro e hipócrita. Verdadeiro porque eu já fui professor de instituições particulares voltadas para um público de renda mais baixa, e, de fato, constatei que muitos estudantes chegam ao ensino superior sem formação básica. É necessário não generalizar e criar preconceitos. Fui professor de excelentes alunos nessas instituições, pessoas que quase sempre trabalhavam para estudar, que não puderam terminar o ensino médio e ingressar imediatamente na faculdade, que moravam nas regiões periféricas do Rio de Janeiro e não tinham condições de frequentar as  particulares mais caras, ainda que tivessem dinheiro, e pelo tempo que ficaram sem estudar não tinham condições de igualdade para fazer vestibular nas públicas. Contudo, não eram a regra. Nos primeiros períodos do curso, não era incomum encontrar alunos com dificuldade para entender textos simples, para formular frases um pouco mais complexas. Claro que esse aluno, se estudasse, levasse o curso a sério, se formava, ainda que com dificuldade, e saia muito melhor do que entrou. Conheci muitos casos. De gente que passou no exame e em concursos públicos. Mas é necessário denunciar a hipocrisia desse argumento também, afinal, boa parte das instituições privadas foi criada, ou cresceu muito, porque se voltou para esse aluno, em regra mal formado e de baixa renda. Nada contra, muito, mas muito pelo contrário. Quero deixar isso claro: penso que todos têm direito a ter acesso ao ensino universitário. E não podemos esperar até que todos estejam maravilhosamente bem formados no ensino fundamental e médio para que isso ocorra. Isso seria de um elitismo absurdo. Os estudantes "mal formados" também têm direito à universidade. Agora, já, e não quando ficarem "intelectualmente preparados". Até porque conhecimento formal nem sempre quer dizer muita coisa. Conheço pessoas formalmente preparadas, mas que melhor fariam à humanidade se fossem analfabetas. No entanto, as instituições particulares não podem reclamar do seu público, pois sempre souberam "quem era seu aluno". Deveriam ter se preparado para melhor formar esse cidadão, para qualificá-lo. Ao contrário, ficam querendo contratar professores sem a devida formação, que são mais baratos, burlando exigências legais a esse respeito ou fazendo pesados lobbies no Congresso Nacional para alterar a legislação, punem o docente que reprova muito, pois aumenta a evasão, e passam ao seu aluno o péssimo ensinamento, nada cidadão, que educação é artigo de consumo igual a outro qualquer e que o estudante é um "consumidor". Isso é um absurdo, afinal consumidor "pode tudo", até afrontar professor que o reprova, o diretor remunerado que não quebra matérias pré-requisito, que não lhe aplica uma prova especial para passar por cima daquele "professor chato". Liberdade de cátedra e de gestão de cursos é balela na imensa maioria dessas instituições, que não podem, em hipótese alguma, agora, pretender culpar a baixa qualidade dos seus alunos. Quando o sistema é deturpado, todos se deturpam, o professor que aprova indevidamente, o aluno que não estuda porque sabe que vai passar e se não passar dá-se um jeitinho. Mas é errado, muito errado, culpar o "professor que aprova" ou o aluno que "arruma um jeitinho". Isso é covardia e esconde os reais culpados. É necessário, de novo, não generalizar. Além das instituições particulares tradicionais e mais renomadas, existem exceções Brasil afora. Mas são isso, exceções.
Há vários anos, os Exames de Ordem registram índices muito altos de reprovação. O senhor acha que, com base nesses indicadores, o MEC já deveria ter ampliado a fiscalização em torno dos cursos? É favorável a restrições para abertura de cursos?Novamente uma análise crítica é necessária. E é preciso identificar períodos recentes de nossa história e, sim, valorá-los, politicamente. Nesse sentido, considero a década de 90 uma tragédia para o ensino superior no país. A falta de um projeto público fez a educação retroceder demais. Se, por um lado, houve universalização do ensino fundamental, pouco se fez para melhorar as condições de trabalho do professor. Os salários continuaram a se deteriorar. No ensino médio, cometeu-se o crime de se decretar a morte do ensino técnico e a falácia de que uma pessoa, para ter "empregabilidade" -para usar o neologismo de um dos sábios da época -, era preciso, exagerando, ter pós-pós-doutorado, senão estava excluído do mundo do trabalho e, portanto, da sociedade. Era preciso ter ensino superior a qualquer custo. Claro que a relação maior estudo=maior remuneração quase sempre é verdadeira, mas, como estamos vendo, para ter emprego disponível, é preciso ter crescimento econômico, uma mínima distribuição de renda, para ter formação de um mercado interno mais amplo. Enfim, medidas capitalistas simples, nada revolucionárias. Mas naquele clima, fazer curso superior se tornou fundamental para ter comida no prato. Isso se tornou uma "verdade" incontestável. O que ocorreu, então? Uma expansão do ensino universitário. De qual setor, público ou privado? Claro que só no privado. Era ideológico para muitos e "espertológico" para outros. O ensino público universitário estava sob intenso ataque, ficamos anos sem aumentar o número de vagas, sem contratar docentes, sem aumentar salários dos professores e servidores. Fora o discurso de privatização que pega muito bem intencionado, de que as universidades públicas deveriam cobrar mensalidades, pois são um antro de privilégio, em que só filho de rico estuda. Com tudo isso, em um determinado momento, o percentual de alunos matriculados no ensino superior privado era de 80% e no público, só de 20%.
E com relação ao curso de Direito?
A relação no Direito talvez fosse ainda mais desproporcional. Nessa mesma época, o MEC permitiu indiscriminadamente a abertura de cursos universitários privados. De quais cursos, principalmente? Direito e Administração, cursos fáceis de implementar, mais baratos, e que dão ao formado um leque maior de possibilidades no mercado de trabalho, especialmente o curso de Direito, com os concursos públicos. Não havia emprego no setor privado, então por que alguém iria fazer Engenharia? Agora, os mesmos que defenderam as políticas estagnantes dos anos 80 e 90 criticam a falta de engenheiros. Mas criar cursos de Direito virou uma mina de ouro para muita gente. Era o meio mais fácil de virar "doutor". E depois que se abre um curso, fica difícil fechar. Vivemos em um estado democrático de direito, há que se ter o necessário contraditório, tem o problema dos alunos matriculados. Não se fecha do dia para a noite e está certo que seja assim. Problema houve em se conceder tantas autorizações.
Como o senhor analisa todo esse processo?
Hoje, felizmente, assistimos a uma lenta reversão desse processo. Com o crescimento do emprego, da renda, muitos cursos voltaram a ser procurados, outros novos foram criados, em resposta às novas demandas por conhecimentos específicos. Além disso, ao menos no quesito vagas, as universidades públicas ampliaram sua oferta, inclusive em Direito. Então, sim, sou a favor de restrição maior para abertura de novos cursos de Direito, o que não significa proibição total, mas acredito que a desproporcional procura pelo curso tende a diminuir, em comparação com outras áreas e especialidades. Pode haver um mínimo de segurança e previsibilidade fora do serviço público, desde que sejam políticas de Estado a valorização dos salários na renda nacional, a distribuição de renda até atingirmos um patamar civilizado - e estamos ainda longe -, o incentivo ao mercado interno, aos investimentos produtivos, essas coisas básicas de qualquer sociedade minimamente justa. Isso não significa que o número absoluto de estudantes que buscam os cursos de Direito vá diminuir. Isso até pode ocorrer, mas temos que ter em mente que temos uma das populações menos instruídas do mundo. O percentual de brasileiros que estão ou têm curso universitário é muito baixo até para a América Latina. Então, esperemos que ao menos no médio prazo o estudante que chega às universidades seja melhor formado. Estou otimista.
O currículo dos cursos de Direito, de maneira geral, está atualizado ou se ensina como há 30 ou 40 anos? Os cursos evoluíram?
Confesso que não tenho uma opinião plenamente definida sobre isso. Muitos dizem e repetem que se ensina direito como há 30 ou 40 anos e que isso é errado. Concordo. Mas como deve ser ensinado o Direito? Ninguém me respondeu satisfatoriamente, ao menos que eu tenha lido ou escutado. Em geral, essas críticas vêm acompanhada de uma, no meu entender, descabida ideologia por parte do emissor da mensagem. Ora ouço quem defenda um ensino voltado para as necessidades do mercado. Que diabos é isso? De outra ponta, escuto que o estudo do Direito precisa ser mais crítico. Mas não se ensina alguém a ser crítico. Ou a pessoa é ou se torna por ela mesma. E aí vai ser aquele tipo de ser humano tão necessário. Afinal, são os que não se conformaram apenas em reproduzir o que aprenderam que nos fizeram sair das cavernas. Mais importante que "ensinar" um homem ou uma mulher já formados a serem "críticos" é mudar nosso ensino fundamental, ainda baseado no sistema de avaliação em "provas", leitura apenas dos livros "didáticos", de dar o conhecimento pronto e fechado, sem ensinar o aluno a pesquisar, a aprender por ele mesmo. Esse aspecto, inclusive, foi minha grande decepção no ensino universitário. Constatar como os alunos não gostam e não sabem pesquisar, não têm a curiosidade, mesmo os bons alunos. A maioria quer receber o conhecimento pronto e acabado, em livros determinados pelo professor. Cansei de receber reclamações de alunos porque eu não dava um livro de minha preferência, não tinha um autor que seguia fielmente. Os trabalhos de monografia que li e participei das bancas foram quase sempre frustrantes, ainda que alguns fossem bons do ponto de vista formal. Criou-se uma relação muito utilitária com o conhecimento. Vivemos em uma sociedade em que o sujeito vive até os vinte e poucos anos apenas pelo que quer ser depois dos vinte e poucos anos. Quando finalmente chega aos vinte e poucos anos, não é incomum a frustração e a falta de perspectiva. Então, penso que os cursos de Direito devem, na marra, exigir pesquisa do aluno e abolir livros didáticos obrigatórios. Em termos concretos, sou também simpático a que os currículos ofereçam ênfases diferenciadas aos estudantes dos últimos períodos.
A dificuldade em conseguir aprovação no Exame da OAB tem aberto grande espaço para cursinhos preparatórios para esta prova. Como vê esta fenômeno?
Natural. Oferta e procura. Nunca lecionei em qualquer cursinho preparatório para qualquer concurso ou exame, e nem pretendo. Mas não tenho nenhum discurso moralista sobre isso. Na verdade, se o aluno obtiver conhecimentos que não adquiriu na universidade, tudo bem.
Nos últimos anos, tem crescido muito a oferta de cursos de pós-graduação, em especial os cursos lato sensu, de duração menor. Isto também vem ocorrendo na área de Direito? Na percepção da OAB, este crescimento, principalmente no setor privado, tem sido acompanhado pela qualidade?
Não. Em regra, a exigência acadêmica nos cursos de pós-graduação lato senso é pífia. Mas sou plenamente a favor da criação de novos mestrados e doutorados, que são mais difíceis, desde que o MEC autorize apenas aqueles que efetivamente tenham condições.
Como o senhor vê o quadro da educação básica no Brasil? O que precisaria melhorar?
Não sou um especialista, mas penso que são necessários salário decente, melhor formação intelectual do professor e pedagogia diferente, que incentive a pesquisa, o desejo pelo conhecimento e reduza as provas e as decorebas.

Um comentário:

  1. Olá meu caro!!
    Concordo em gênero, número e grau com o membro da OAB. O sistema é precário, os professores são "fracos" e os alunos não tiveram condições de construírem uma base, pelo menos regular nas fases anteriores.
    Esse estado de coisas, bem como a mercantilização, principalmente, dos curso "baratos" citados pelo advogado, que diga-se de passagem, não se intitulou "doutor", como intitulação a maioria absoluta dos bachareis em direito. (Talvez sejam porque ele não estudou nesse oba oba da mercatilização, tanto da graduação,bem como da pós.
    Finalizo, acreditando que se faz mister uma maio seriedade no licenciamento de tais cursos e fiscalização dos já existentes. Por outro lado, a construção de uma educação pública de qualidade, minimizaria, certamente essas distorções...

    Je vous embrasse!!

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